Na primeira vez que vi as esculturas da série Acesso Negado de Laerte Ramos, o artista se referia a elas como máquinas de guerra, justamente por terem, como fonte de inspiração, as torres móveis de César, aquelas que o imperador romano desenhava, e às vezes usava para ataques durante as inúmeras guerras de expansão que promoveu. Naquele primeiro encontro, encarar as peças, delicadas esculturas de cerâmica branca, e entendê-las como pequenas máquinas de guerra gerou, em mim, um conflito por sua natureza contraditória. Hoje, quando as máquinas de guerra já não são mais assim chamadas, mas sim parte de uma série intitulada Acesso Negado (e Acesso Negrado, no caso das peças pretas), a contradição da delicadeza do material versus a brutalidade da inspiração me parece tão preciosa que aquele conflito anterior perde o sentido. Isso porque, hoje, elas me remetem claramente à idéia de LEMBRANÇA. As peças de cerâmica, tanto as brancas quanto as pretas, têm inspiração nas torres de guerra da antiguidade romana, porém, não se limitam a isso. O universo criativo de um artista é muito mais amplo do que isso. Laerte Ramos vem se dedicando às artes, especialmente à escultura e à gravura, há 10 anos. Seus trabalhos sempre evidenciaram silhuetas que nos remetem a objetos e artigos reconhecíveis do cotidiano. Caixas d’água, engrenagens, brinquedos, postes de energia, etc. Todas coisas que vemos diariamente e que não notamos, mas que arquivamos em nossa memória. Em suas gravuras, Laerte as transforma em silhuetas chapadas em preto contrastando com o fundo branco do papel. Ao identificarmos o objeto, nos sentimos reconfortados pelo reconhecimento, pela lembrança. Em suas esculturas, o artista delimita seus contornos, brinca com seus elementos estruturais, mistura, engrena, brinca com suas imagens e cria objetos únicos. Ao nos depararmos com elas, nos sentimos atraídos, mais uma vez reconfortados pelo reconhecimento, mas ao mesmo tempo intrigados, instigados a buscar o verdadeiro sentido daqueles objetos, a retomar uma lembrança talvez perdida. Acesso Negado e Acesso Negrado representam exatamente isso. Apesar da inspiração bélica, remetem também aos brinquedos da infância, às imagens dos desenhos, das histórias em quadrinhos, às dezenas de estruturas que vemos diariamente. A inspiração, apesar de bélica, é também poética, já que baseada mais nas lembranças quase perdidas de histórias ouvidas e vividas ao longo do tempo, do que na brutalidade das máquinas de guerra em si. O título das duas séries apresentadas aqui, Acesso Negado, é mais uma referência a isso que venho tentando descrever. (Acesso Negrado aparece como uma feliz brincadeira com o fato de que as peças desta série em especial são feitas em cerâmica preta). Nosso acesso é negado e nossas lembranças convocadas em diferentes momentos: primeiro, por serem feitas de material extremamente frágil e delicado, nosso acesso a elas é negado. Daqui, podemos levar apenas a lembrança dos trabalhos. Depois, o acesso é negado às peças pretas pelas brancas e vice-versa, ao serem dispostas como em um jogo de xadrez, porém sem tabuleiro e sem reis e rainhas. Só com lembranças e criatividade podemos jogar este jogo. Por fim, um terceiro acesso é negado ao lembrarmos que essas peças remetem às torres de guerra de César. Em uma guerra de expansão territorial, como as promovidas por César, o acesso parece ser negado em todas as frentes de batalha. Aqui, mais uma vez, temos acesso apenas às lembranças dos livros de história já que nenhum de nós viveu essas batalhas. As peças brancas e pretas de Laerte nos provocam aquela sensação de já termos visto algo parecido em algum lugar. Ao nos remeter a algo que já conhecemos, somos acolhidos por lembranças. Lembranças são artigos frágeis. Se não atentarmos a elas, fogem, somem, viram pó em meio ao turbilhão de pensamentos diários. Laerte, ao se lembrar de César, grande imperador romano, e/ou dos brinquedos que enriqueceram sua infância, dos desenhos que assistiu ou das obras e estruturas que visitou, escolheu ilustrar suas lembranças em frágeis estruturas de cerâmica, tão frágeis quanto suas lembranças. Encarar essas peças, delicadas e frágeis estruturas, e entendê-las como pequenas máquinas de guerra não me traz mais nenhuma contradição já que o tema-inspiração não é brutal, pelo contrário, é delicado e sutil, uma lembrança. Laerte Ramos usa aqui, assim como na maioria de seus trabalhos, o que tem de mais rico, suas lembranças, suas histórias vividas. Estas sim não nos negam acesso. Pelo contrário, Laerte nos mostra claramente os caminhos de sua lembrança e de sua inspiração. Ao fazê-lo, nos deixa com aquele gostinho de quero mais, com aquela vontade de redescobrir e relembrar nossas próprias lembranças, nossas próprias histórias.